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Como elogiar alguém

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 26.

Conselho ao Nelson Freire

Caro Nelson Freire: Ao terminar de ouvir os dois concertos de Brahms interpretados por você, lembrei-me de um incidente que poderá lhe ser de grande valia. Bernard Shaw foi ouvir Jascha Heifetz. Chegando em casa, depois do concerto, escreveu-lhe uma carta imediatamente. O conteúdo era mais ou menos assim: “Prezado senhor Jascha Heifetz. Ouvi-o no concerto desta noite. Voltei para casa profundamente preocupado. Porque tocando do jeito como o senhor toca é impossível que os deuses não se roam de ciúme – porque é certo que eles não conseguem tocar como o senhor. Eles sentirão inveja. E deuses invejosos são perigosos. Assim, dou-lhe um conselho. De noite, antes de dormir, não faça suas orações costumeiras. Pegue o seu violino e toque desafinado. Os deuses, ao ouvi-lo, se sentirão aliviados na sua inveja e deixarão o senhor em paz. Atenciosamente, George Bernard Shaw”. Nelson, faço meu o conselho de Shaw. Sozinho, de noite, em vez de rezar, toque mal, esbarre algumas notas, erre… Nenhum crítico o estará ouvindo. Mas os deuses estarão. E eles dormirão em paz e você dormirá em paz. Conselho do seu conterrâneo Rubem Alves.

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 26.

O múltiplo e o simples

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 48.

O Tao-Te-Ching, livro sagrado do taoísmo, Já dizia há mais de um milênio que temos dois lados. Há um lado que olha para fora. Olhando para fora defrontamo-nos com o mundo da multiplicidade, 10 mil coisas que se impõem aos nossos sentidos, nos dão ordens, nos atropelam, e nos enrolam aos trambolhôes, como aquelas ondas de praias de tombo. Mas há um outro lado que olha para dentro. Aí nos defrontamos com uma única coisa, o desejo mais profundo do nosso coração, aquela coisa que, se a tivéssemos, nos traria alegria. Jesus contou a parábola de um homem que tinha muitas jóias e que, ao encontrar uma única pérola maravilhosa, vendeu as muitas para comprar uma única. No primeiro lado mora o conhecimento, a ciência, a bolsa de valores, a cotação do dólar, as coisas que se podem comprar, e todas as coisas que compõem a nossa vida de fora. Essas coisas são “meios para se viver” ~ ferramentas que podemos usar. No segundo lado mora a sabedoria, que é a capacidade para discernir as coisas que valem a pena. Num bufê, você encheria o seu prato com tudo o que está na mesa? Somente um tolo faria isso. Você consultaria o seu desejo: “De tudo isso que está à minha frente, o que é que realmente desejo comer?”. Tolos são aqueles que, seduzidos pela multiplicidade, se entregam vorazmente a ela. Eles acabam tendo uma terrível indigestáo. Sábios são aqueles que, da multiplicidade, escolhem o essencial. Simplicidade é isso: escolher o essencial.

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 48.

Saber ouvir de verdade é…

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 47.

Sobre o Ouvir

O ato de ouvir exige humildade de quem ouve. E a humildade está nisso: saber, não com a cabeça mas com o coração, que é possível que o outro veja mundos que nós não vemos. Mas isso, admitir que o outro vê coisas que nós não vemos, implica reconhecer que somos meio cegos… Vemos pouco, vemos torto, vemos errado.

Bernardo Soares diz que aquilo que vemos é aquilo que somos. Assim, para sair do círculo fechado de nós mesmos, em que só vemos nosso próprio rosto refletido nas coisas, é preciso que nos coloquemos fora de nós mesmos. Não somos o umbigo do mundo. E isso é muito difícil: reconhecer que não somos o umbigo do mundo! Para se ouvir de verdade, isso é, para nos colocarmos dentro do mundo do outro, é preciso colocar entre parêntesis, ainda que provisoriamente, as nossas opiniões.

Minhas opiniões! Ê claro que eu acredito que as minhas opiniões são a expressão da verdade. Se eu não acreditasse na verdade daquilo que penso, trocaria meus pensamentos por outros. E se falo é para fazer com que aquele que me ouve acredite em mim, troque os seus pensamentos pêlos meus. É norma de boa educação ficar em silêncio enquanto o outro fala. Mas esse silêncio não é verdadeiro. É apenas um tempo de espera: estou esperando que ele termine de falar para que eu, então, diga a verdade. A prova disto está no seguinte: se levo a sério o que o outro está dizendo, que é diferente do que penso, depois de terminada a sua fala eu ficaria em silêncio, para ruminar aquilo que ele disse, que me é estranho. Mas isso jamais acontece. A resposta vem sempre rápida e imediata. A resposta rápida quer dizer: “Náo preciso ouvi-lo. Basta que eu me ouça a mim mesmo.

Não vou perder tempo ruminando o que você disse. Aquilo que você disse não é o que eu diria, portanto está errado… .

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 47.

Patos selvagens

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 37.

Era uma vez um bando de patos selvagens que voava nas alturas. Lá em cima era o vento, o frio, os horizontes sem fim, as madrugadas e os poentes coloridos. Tudo tão bonito! Mas era uma beleza que doía. O cansaço do bater das asas, o não ter casa fixa, o estar sempre voando e as espingardas dos caçadores… Foi então que um dos patos selvagens, olhando lá das alturas para a terra aqui embaixo viu um bando de patos domésticos. Eram muitos. Estavam tranquilamente deitados à sombra de uma árvore. Não precisavam voar. Não havia caçadores. Não precisavam buscar o que comer: o seu dono lhes dava milho diariamente. E o pato selvagem invejou os patos domésticos e resolveu Juntar-se a eles. Disse adeus aos seus companheiros, baixou seu voo e passou a viver a vida mansa que pedira a Deus. E assim viveu por muitos anos. Até que… Até que, num ano como os outros chegou de novo o tempo da migração dos patos. Eles passavam nas alturas, no fundo do azul do céu, grasnando, um grupo após o outro. Aquelas visões dos patos em voo,as memórias de alturas, aqueles grasnados de outros tempos começaram a mexer com algum lugar esquecido dentro do pato domesticado, o lugar chamado saudade. Uma nostalgia pela vida selvagem, pelas belezas que só se vêem nas alturas, pelo fascínio do perigo… Até que não foi mais possível aguentar a saudade. Resolveu voltar a ser o pato selvagem que fora. Abriu suas asas, bateu-as para voar, como outrora… mas não voou. Caiu. Esborrachou-se no chão. Estava gordo demais. E assim passou o resto de sua vida: em segurança, gordo de barriga cheia, protegido pelas cercas e triste por não poder voar…

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 37.

Ostra feliz não faz pérola

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 11.

“Ostras sao moluscos, animais sem esqueleto, macias, que representam as delícias dos gastrônomos. Podem ser comidas cruas, com pingos de limão, com arroz, paellas, sopas. Sem defesas – sao animais mansos seriam uma presa fácil dos predadores. Para que isso não acontecesse, a sua sabedoria as ensinou a fazer casas, conchas duras, dentro das quais vivem.

Pois havia num fundo de mar uma colônia de ostras, muitas ostras. Eram ostras felizes. Sabia-se que eram ostras felizes porque de dentro de suas conchas saía uma delicada melodia, música aquática, como se fosse um canto gregoriano, todas cantando a mesma música. Com uma exceção de uma ostra solitária que fazia um solo solitário. Diferente da alegre música aquática, ela cantava um canto muito triste. As ostras felizes se riam dela e diziam Ela não sai da sua depressão… . Não era depressão. Era dor. Pois um grão de areia havia entrado dentro da sua carne e doía, doía, doía. E ela não tinha jeito de se livrar dele, do grão de areia. Mas era possível livrar-se da dor. O seu corpo sabia que, para se livrar da dor que o grão de areia lhe provocava, em virtude de suas aspereza, arestas e pontas, bastava envolve-lo com uma substância lisa, brilhante e redonda. Assim, enquanto cantava seu canto triste, o seu corpo fazia o trabalho – por causa da dor que o grão de areia lhe causava. Um dia, passou por ali um pescador com o seu barco. Lançou a rede e toda a colônia de ostras, inclusive a sofredora, foi pescada. O pescador se alegrou, levou-as para casa e sua mulher fez uma deliciosa sopa de ostras. Deliciando-se com as ostras, de repente seus dentes bateram num objeto duro que estava dentro de uma ostra. Ele o tomou nos dedos e sorriu de felicidade era uma pérola, uma linda pérola. Apenas a ostra sofredora fizera uma pérola. Ele a tomou e deu-a de presente para a sua esposa.

Isso é verdade para as ostras. E é verdade para os seres humanos. No seu ensaio sobre o nascimento da tragédia grega apartir do espirito da música, Nietzsche observou que os gregos, por oposicao aos cristãos, levavam a tragédia a serio, Tragédia era tragédia. Não existia céu para eles, como existia para os cristãos, um céu onde a tragédia seria transformada em comedia. Ele se perguntou entao das razoes por que os gregos, sen- do dominados por esse sentimento trágico da vida, não sucumbiram ao pessimismo. A resposta que encontrou foi a mesma da ostra que faz uma pérola: eles não se entregaram ao pessimismo porque foram capazes de transformar a tragédia em beleza. A beleza nao elimina a tragedia, mas a toma suportável. A felicidade e um dom que deve ser simplesmente gozado. Ela se basta. Mas ela nao cria. Nao produz pérolas. Sao os que sofrem que produzem a beleza, para parar de softer. Esses sao os artistas. Beethoven – como é possivel que um homem completamente surdo, no fim da vida, tenha produzido uma obra que canta a alegria. Van Gogh, Cecilia Meireles, Fernando Pessoa…”

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 11.