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Teologia é uma brincadeira

De Rubem Alves, retirado do ensaio “Sobre deuses e caquis” (O quarto do mistério, p 137)

Hoje faria tudo diferente.

Começaria por informar meus leitores de que teologia é uma brincadeira, parecida com o jogo encantado das contas de vidro que Hermann Hesse descreveu, algo que se faz por puro prazer, sabendo que Deus está muito além de nossas tramas verbais.

Teologia não é rede que se teça para apanhar Deus em suas malhas, porque Deus não é peixe, mas Vento que não se pode segurar…

Teologia é rede que tecemos para nós mesmos, para nela deitar o nosso corpo.

Ela não vale pela verdade que possa dizer sobre Deus (seria necessário que fôssemos deuses para verificar tal verdade); ela vale pelo bem que faz à nossa carne.

Ah! Pensam que sou herege… Nada disto. Estou apenas repetindo coisa muito velha, esquecida, da tradição protestante, que diz que ‘conhecer a Cristo é conhecer os seus benefícios’: de Deus, o único que podemos saber é o bem que faz ao nosso corpo. Com o que concorda o sábio Riobaldo: ‘Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. E o aberto perigo das grandes e pequenas horas… Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim, dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença para coisa nenhuma.’

De Rubem Alves, retirado do ensaio “Sobre deuses e caquis” (O quarto do mistério, p 137)

A Reforma Protestante

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 215.

Eu sou de tradição protestante, muito embora, para permanecer protestante, tenha me desligado das igrejas protestantes. É preciso esclarecer que a tradição protestante nada tem a ver, absolutamente nada, com esses movimentos religiosos que se denominam “evangélicos”. A tradição protestante não promete milagres, cultiva a razão, estimula a ciência, é profundamente ética, e a ela estão ligados nomes como Leibniz, Kant, Hegel, Kierkegaard, Albert Schweitzer, Martin Luther King Jr., Dag Hamarkjoeld, Dietrich BonhoefFer, Mondelaine. Em que consiste essa tradição? A Reforma, contrariamente ao nome, não foi um movimento que visava “reformar” a Igreja Católica do século XVI: não se coloca remendo de pano novo em tecido podre. Não é um conjunto de doutrinas teológicas diferentes como justificação pela graça e sacerdócio universal das pessoas. Não é uma nova organização da Igreja. Quem só sabe essas coisas não viu o que é essencial. Para dizer o que foi o espírito da Reforma, vou me valer de uma peça musical, a Segunda sinfonia de Gustav Mahler (1860-1911), chamada Sinfonia da ressurreição. Eis como ele mesmo descreve o último movimento da sinfonia: “Chegou o dia do julgamento final. O terror cobre a terra. A terra estremece, as sepulturas se abrem, os mortos ressuscitam, poderosos e humildes, reis e mendigos, justos e injustos. Um grito terrível enche o universo com um pedido de perdão que enche o espaço. Ouvem-se as trombetas apocalípticas. É hora do ajuste de contas, débitos e créditos, Céu e Inferno, Inferno tão bem pintado nas telas horrendas de Hieronimus Bosch. Então, em meio a um silêncio sinistro, ouve-se o canto de um rouxinol distante. Uma grande tranquilidade invade tudo. E eis, surpresa! Não há julgamento, não há débitos e créditos, não há justos e pecadores, não há poderosos e humildes, não há vinganças e recompensas, não há condenações! Um sentimento de amor perfuma o mundo”. A Reforma foi o canto de um rouxinol nesse horror de culpa e medo. Não há julgamento. Deus é todo bondade.

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 215.

Consultório bíblico

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 214.

Laura Schlessinger é uma conhecida locutora de rádio nos Estados Unidos. Ela tem um desses programas interativos que dá respostas e conselhos aos ouvintes que a chamam ao telefone. Recentemente, perguntada sobre a homossexualidade, a locutora disse que se trata de uma abominacão, pois assim a Bíblia o afirma no livro de Levítico 18:22. Um ouvinte escreveu-lhe então uma carta que vou transcrever: “Querida Dra. Laura: Muito obrigado por se esforçar tanto para educar as pessoas segundo a Lei de Deus. Eu mesmo tenho aprendido muito do seu programa de rádio e desejo compartilhar meus conhecimentos com o maior número de pessoas possível. Por exemplo, quando alguém se põe a defender o estilo homossexual de vida, eu me limito a lembrar-lhe que o livro de Levítico, no capítulo 18, versículo 22, estabelece claramente que a homossexualidade é uma abominaçâo. E ponto final… Mas, de qualquer forma, necessito de alguns conselhos adicionais de sua parte a respeito de outras leis bíblicas concretamente e sobre a forma de cumpri-las:

Gostaria de vender minha filha como serva, tal como o indica o livro de Êxodo, 21:7. Nos tempos em que vivemos, na sua opinião, qual seria o preço adequado?
O livro de Levítico 25:44 estabelece que posso possuir escravos, tanto homens quanto mulheres, desde que sejam adquiridos de países vizinhos. Um amigo meu afirma que isso só se aplica aos mexicanos, mas não aos canadenses. Será que a senhora poderia esclarecer esse ponto? Por que não posso possuir canadenses?
Sei que não estou autorizado a ter qualquer contato com mulher alguma no seu período de impureza menstrual (Lev. 18:19, 20:18, etc.). O problema que se me coloca é o seguinte: como posso saber se as mulheres estão menstruadas ou não? Tenho tentado perguntar-lhes, mas muitas mulheres são tímidas e outras se sentem ofendidas.
Tenho um vizinho que insiste em trabalhar no sábado. O livro de Êxodo 35:2 claramente estabelece que quem trabalha nos sábados deve receber a pena de morte. Isso quer dizer que eu, pessoalmente, sou obrigado a matá-lo? Será que a senhora poderia, de alguma maneira, aliviar-me dessa obrigação aborrecida?
No livro de Levítico 21:18-21 está estabelecido que uma pessoa não pode se aproximar do altar de Deus se tiver algum defeito na vista. Preciso confessar que eu preciso de óculos para ver. Minha acuidade visuai tem de ser l00% para que eu me aproxime do altar de Deus? Será que se pode abrandar um pouco essa exigência?
A maioria dos meus amigos homens tem o cabelo bem cortado, muito embora isto esteja claramente proibido em Levítico 19:27. Como é que eles devem morrer?
Eu sei, graças a Levítico 11:6-8, que quem tocar a pele de um porco morto fica impuro. Acontece que adoro jogar futebol americano, cujas bolas são feitas de pele de porco. Será que me será permitido continuar a jogar futebol americano se usar luvas?
Meu tio tem uma granja. Deixa de cumprir o que diz Levítico 19:19, pois planta dois tipos diferentes de sementes no mesmo campo, e também deixa de cumprir a sua mulher, que usa roupas de dois tecidos diferentes, a saber, algodão e poliéster. Além disso, ele passa o dia proferindo blasfêmias e maldizendo. Será que é necessário levar a cabo o complicado procedimento de reunir todas as pessoas da vila para apedrejá-los? Não poderíamos adotar um procedimento mais simples, qual seja, o de queimá-los numa reunião privada, como se faz com um homem que dorme com a sua sogra, ou uma mulher que dorme com o seu sogro (Levítico 20:14).
Sei que a senhora estudou esses assuntos com grande profundidade de forma que confio plenamente na sua ajuda. Obrigado de novo por recordar-nos que a Palavra de Deus é eterna e imutável.

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 214.

Deus nos deu asas

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 219.

Deus nos deu asas
As religiões inventaram as gaiolas. Nossas asas são a imaginação. Pela imaginação voamos longe, muito longe, pela terra do nunca mais, pela terra do impossível, pela terra do impensado. Não entenderam? Leiam Cem
anos de solidão. Vocês entenderão. Eu até que entendo a razão por que se fazem gaiolas e cercas. Vejam o caso das galinhas. Se não vivessem em cercados, como colher os seus ovos? Se os pássaros não estivessem nas gaiolas, como possuir o seu canto? Cercas e gaiolas são construídas para se possuir aquilo que, de outra forma voaria livre, para longe… Faz tempo, escrevi uma estória para a minha filha, A menina e o pássaro encantado. É sobre uma menina que tinha como seu melhor amigo um pássaro. Mas o pássaro voava livre. Vinha quando tinha saudades da menina. E depois ia embora e deixava a menina a chorar. Aí a menina comprou uma gaiola…
Essa estória eu a escrevi porque iria ficar muito tempo longe, nos Estados Unidos, e ela, minha filha de quatro anos, não queria que eu fosse. Fui e voltei. Depois de publicada, fui informado de que ela estava sendo usada por terapeutas como material para tratamento de homens que queriam engaiolar as mulheres e mulheres que queriam engaiolar os homens. Aí um amigo me disse. “Que linda estória você escreveu sobre Deus…” Fiquei sem entender. Ele perguntou então: “Mas o Pássaro Encantado não é Deus, que as religiões tentam prender numa gaiola?. Cada religião anuncia que o Pássaro Sagrado está na sua gaiola, só na sua gaiola. Os outros pássaros, nas gaiolas das outras religiões, não são o verdadeiro Pássaro Encantado…”

Canto ou ovos?
Há pessoas que amam o Pássaro Encantado por causa do seu canto. Outros, por causa dos seus ovos. Com ovos se fazem deliciosas omeletes. Jesus disse a mesma coisa de outra forma. Há os que amam a Deus por causa dos seus poemas. Deus é poeta. No princípio era o Verbo. Outros amam a Deus por causa dos pães. Deus é um bom padeiro.

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 219.

Evangelho de judas

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 193.

Chegou-me a última edição da revista Geographic Magazine, toda ela dedicada ao Evangelho de Judas, que está produzindo uma grande confusão nos círculos religiosos. E isso porque esses manuscritos trazem uma versão diferente do que aconteceu: Judas não foi traidor. Não entendo essa confusão, porque qualquer pessoa minimamente informada em teologia sabe que Judas não foi um traidor. Trair é romper um pacto. Mas Judas não rompeu pacto algum. Pelo contrário: fez cumprir o pacto que lhe havia sido destinado por Deus Pai desde toda eternidade. Porque Deus, na sua onisciência, estabeleceu um plano de salvação para os homens que, de outra forma, iriam para o Inferno. Deus poderia perdoar os seus pecados. Mas Deus não perdoa. Aquilo a que se dá o nome de perdão é, na realidade, o pagamento de uma dívida pendente. Deus não perdoa dívidas. As dívidas têm de ser quitadas. Quitadas com quê? Dizem as Escrituras que sem sangue não há remissão de pecados. Deus só aceita pagamento em sangue. Que sangue seria suficiente para pagar os pecados do mundo? Somente um sangue de valor infinito. Mas, sangue de valor infinito, só o sangue divino. Para isso veio Jesus – segundo a teologia -, para derramar o seu sangue de valor infinito que Deus aceitaria como pagamento. Deus planeja a morte do seu próprio filho para nos salvar do Inferno. Por que Deus criou o Inferno, isso eu não sei. Sei que não foi o Diabo, porque Deus, sendo onipotente, não permitiria que o Diabo tivesse tais poderes. Então, todo o plano elaborado por Deus Pai desde toda a eternidade dependia de que Jesus fosse crucificado. Imaginem que ele não fosse crucificado. Que ele se mudasse para a Grécia e terminasse os seus dias com 88 anos de idade, como professor de filosofia. A filosofia ganharia, mas a humanidade iria para o Inferno. Foi assim que Deus, desde toda eternidade, determinou que um homem chamado Judas entregasse Jesus para o sacrifício. Judas não tinha alternativa. Ele tinha de ser fiel aquilo que Deus determinara. Então não foi Judas que entregou Jesus. Parece assim, vendo-se do lado do tempo. Mas, vendo-se sub specie artemitatis, é Deus que está fazendo tudo. Judas foi um fiel instrumento de Deus para que a salvação se realizasse. Assim, nenhum outro apóstolo contribuiu tanto para a salvação da humanidade quanto Judas. Isso já era do conhecimento da Igreja, desde sempre. Não entendo, portanto o rebuliço. Proponho a canonizaçâo de Judas.

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 193.

Vida após a morte

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 197.

Achei apropriado informar os meus leitores sobre aquilo que sinto e penso acerca da vida após a morte. Meu coração está tranquilo e não há dúvidas que o perturbem porque são duas, apenas duas, as possibilidades à minha frente. Primeira possibilidade: há vida após a morte. Nesse caso, estou tranquilo porque, se há vida após a morte, é porque há um Poder Misterioso que a garante, poder esse a que alguns dão o nome de Deus, sem saber o que ele seja. No caso de haver esse Poder Misterioso, é minha tola convicção (todas as convicções são tolas) de que ele é só amor. Não estou sozinho nessa crença, tenho a meu favor o testemunho de profetas, místicos e poetas. Sendo só amor, é claro que a vida após a morte será uma realização do amor. A ideia de que o Poder Misterioso é um torturador que mantém, para prazer próprio, uma câmara de torturas sem fim chamada Inferno, é uma calúnia espalhada pêlos seus inimigos, na esperança de que os homens deixem de amá-lo e passem a odiá-lo. Mas, quando é que o amor se realiza? O amor se realiza quando recebemos de volta as coisas que amamos e perdemos. É por isso que sentimos saudade. A saudade é a nossa alma dizendo para onde ela quer voltar. Assim, em havendo uma vida após a morte, estou certo de que voltarei a subir em jabuticabeiras, a brincar em riachinhos, a balançar no balanço amarrado no galho da mangueira, a comer ora-pro-nóbis refogado com carne de porco, angu, feijão e pimenta, a fazer virar a locomotiva maria-fumaça no virador, a empinar
papagaios em tardes de céu azul, a catar flores de paineira para com elas fazer soldadinhos… Que mais posso desejar? Como disse a Maria Alice, deve haver tantos céus quantas pessoas há. Meu céu não é igual ao seu. Nem poderia ser. Nossas saudades são diferentes. Em torno de cada pessoa gira um universo que é só dela. Dizem os astrônomos que há muitos bilhões de anos (para mim não faz a menor diferença se são bilhões ou milhões, porque esses números são impensáveis) houve um estouro gigantesco, o Big Bang, a partir do qual foram projetados no espaço sem fim os astros celestes que hoje formam o universo que conhecemos. Nada impede que haja infinitos outros, além dos nossos telescópios. Pois eu acho que não foi só isso: todos nós fomos também projetados no espaço sem fim, cada um de nós é uma estrela em volta da qual se forma uma nebulosa espiralada… Essa é a primeira e deliciosa possibilidade.
Segunda possibilidade: não há vida após a morte. Nesse caso, a morte significa que vou voltar ao lugar onde estive por todo o tempo infinito passado, inclusive no Big Bang. Esse período de bilhões de anos não me foi doloroso, não me fez sofrer, nem demorou a passar. E poderei, então, imaginar que o evento maravilhoso do meu nascimento a partir desse caos indefinido poderá se repetir daqui a um bilhão de anos, mas não sofrerei nem ficarei impaciente, porque estarei mergulhado no sono profundo da não existência. Assim, por que ter medo? Medo eu não tenho. Tenho é tristeza porque este mundo é muito bom e quereria continuar a fazer minhas coisas por aqui. Pelo menos por agora é isso que sinto. Pode ser que eu venha a mudar de ideia. Fernando Pessoa escreveu um poema que vai assim: “Tenho dó das estrelas, luzindo há tanto tempo, há tanto tempo… Tenho dó delas. Não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas, um cansaço de existir, de ser, só de ser, o ser triste brilhar, ou sorrir… Não haverá, enfim, para as coisas que são, não a morte, mas sim uma outra espécie de fim, ou uma grande razão – qualquer coisas assim como um perdão?”.
Pode ser que eu venha a sentir esse cansaço e venha a desejar um fim.
Mas ainda não me sinto cansado, agora.

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 197.

O papa reza pela paz

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 192.

Todo mundo quer a paz. Mas, como muito bem observou santo Agostinho, cada um deseja a paz que lhe seja conveniente. A paz das galinhas é um mundo sem gambás. A paz dos gambás é um galinheiro cheio de galinhas. O presidente Bush quer a paz e, para que a sua paz seja alcancada, é preciso que o Irã seja destruído. O Irã deseja a paz e, para que a sua paz seja alcançada, é preciso que os Estados Unidos sejam destruídos.
O papa reza pela paz. Não sei por que é necessário orar pela paz. Jesus disse que, antes que rezemos, Deus já sabe tudo. Qual será o objetivo de rezar pela paz? Chamar Deus à razão? Ele não está prestando atenção? Convence-lo a fazer o milagre da paz? Será que Deus não quer a paz? Ao que tudo indica, ele não quer. Porque, se quisesse, a paz aconteceria… Ele atenderia às rezas do seu representante.

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 192.

O problema da política

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 172.

Se começou errado não tem conserto

O destino da democracia se decide no momento da sua fundação. Se os lobos são eleitos para estabelecer as regras do jogo, será inútil que as ovelhas que os elegeram berrem depois de serem trasnformadas em churrasco. Pois os lobos, que elas elegeram como seus representantes para fazer as leis, escreveram como lei: “É direito dos lobos comer ovelhas”. Não existe caso em que os lobos tenham, democraticamente, aberto mão dos direitos que eles mesmo estabeleceram. As ovelhas são as culpadas de sua desgraça. Foram elas que, pelo voto, deram poder aos lobos.

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 172.

Em terra de cego, quem tem olho é doido

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 162.

As roupas do rei

Hans Christian Andersen foi um dinamarquês que gostava de estórias. Vou recontar a sua estória do rei vaidoso que gostava de roupas bonitas com dois finais: o dele e o meu. “Havia um rei muito tolo que adorava roupas bonitas. Os tolos gostam de roupas bonitas. Ele enviava emissários por todo o país para comprar roupas diferentes. Chegou ao cúmulo de mandar tecer uma faixa real nova com fios de ouro. Dois espertalhões ouviram falar da vaidade do rei e resolveram aproveitar-se dela para se enriquecer. Dirigiram-se ao palácio e anunciaram-se: ‘Somos especialistas em tecidos mágicos’. O rei nunca ouvira falar de tecidos mágicos. Ficou curioso. Ordenou que os dois fossem trazidos à sua presença. ‘Falem-me sobre o tecido mágico’, ordenou o rei. Um dos espertalhôes pôs-se a falar: ‘Majestade, o tecido que tecemos é mágico porque somente as pessoas inteligentes podem vê-lo. Vestindo uma roupa feita com esse tecido Vossa Majestade saberá se aqueles que o cercam são inteligentes ou não’. O rei imediatamente contratou os dois espertalhões. Passados alguns dias, o rei mandou chamar o ministro da Educação e ordenou-lhe que fosse examinar o tecido. O ministro dirigiu-se ao aposento onde os tecelôes trabalhavam. ‘Veja, Excelência, a beleza do tecido’, disseram eles com a máos estendidas. O ministro da Educação não viu coisa alguma e entrou em pânico. ‘Meu Deus, eu não vejo o tecido, logo sou burro…’ Resolveu, então, fazer de conta que era inteligente. Voltou à presença do rei e relatou: ‘Majestade, o tecido é maravilhoso’. O rei ficou muito feliz. Passado dois dias, o rei convocou o ministro da Guerra e ordenou-lhe examinar o tecido. Aconteceu a mesma coisa. ‘Meu Deus’, ele pensou, não sou inteligente. O ministro da Educação viu e eu não estou vendo…’ Resolveu adotar a mesma tática do ministro da Educação. E o rei ficou muito feliz com o seu relatório. E assim aconteceu com todos os outros ministros. Até que o rei resolveu pessoalmente ver o tecido maravilhoso. Não vendo coisa alguma, ele pensou: ‘Os ministros da Educação, da Guerra, das Finanças, da Cultura, das Comunicações viram. Mas eu não vejo nada! Sou burro. Náo posso deixar que eles saibam da minha burrice…’. O rei se entregou então a elogios entusiasmados sobre o tecido que não havia. Marcou-se uma grande festa para que todos os cidadãos vissem o rei em suas novas roupas. No Dia da Pátria, a praça do palácio cheia de homens e mulheres, tocaram-se os clarins e ouviu-se uma voz pêlos alto-falantes: ‘Cidadãos do nosso país! Dentro de poucos instantes a sua inteligência será colocada à prova. O rei vai desfilar usando a roupa que só os inteligentes podem ver’. Canhões dispararam uma salva de seis tiros. Rufaram os tambores. Abriram-se os portões do palácio e o rei marchou vestido com a sua roupa nova. Foi aquele oh! de espanto. Todos ficaram maravilhados. Como era linda a roupa do rei! Todos eram inteligentes. No alto de uma árvore estava um menino que via com seus olhos ignorantes. Não viu roupa nenhuma. O que viu foi o rei pelado exibindo sua enorme barriga, suas nádegas murchas e as vergonhas dependuradas. Com uma gargalhada, deu um grito que a multidão inteira ouviu: O rei está pelado!’. Fez-se um silêncio profundo, seguido por uma gargalhada mais ruidosa que a salva de artilharia. E todos se puseram a gritar: O rei está nu, o rei está nu…’. O rei tratou de tapar as vergonhas com as mãos e voltou correndo para dentro do palácio.”

Agora vou contar a mesma estória com um fim diferente. Ela é em tudo igual à versão de Andersen, até o momento do grito do menino. “O rei está pelado! Fez-se um silêncio profundo, seguido pelo grito da multidão enfurecida. “Menino louco! Não vê a roupa nova do rei! Menino burro!” Com estas palavras agarraram o menino e o internaram num manicômio. Moral da estória: Em terra de cego, quem tem um olho não é rei. É doido.

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 162.

Sentimento das Crianças

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008.

Janucz Korczak: “Vocês dizem: ‘Cansa-nos ter de privar com crianças’. Têm razão. Vocês dizem ainda: ‘Cansa-nos porque precisamos descer ao seu nível de compreensão’. Descer, rebaixar, inclinar-se, ficar curvado. Estão equivocados. Não é isto o que nos cansa, e sim o fato de termos de elevar-nos até alcançar o nível de sentimentos das crianças. Elevar-nos, subir, ficar na ponta dos pés, estender a mão. Para não machucá-las.” (Do livro Janucz Korczak, Edusp,1998)

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008.