Category Archives: Religião

Filme: EU MAIOR

EU MAIOR TRAZ UMA REFLEXÃO CONTEMPORÂNEA SOBRE AUTOCONHECIMENTO E BUSCA DA FELICIDADE, POR MEIO DE ENTREVISTAS
COM EXPOENTES DE DIFERENTES ÁREAS, INCLUINDO LÍDERES ESPIRITUAIS, INTELECTUAIS, ARTISTAS E ESPORTISTAS:

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Teologia é uma brincadeira

De Rubem Alves, retirado do ensaio “Sobre deuses e caquis” (O quarto do mistério, p 137)

Hoje faria tudo diferente.

Começaria por informar meus leitores de que teologia é uma brincadeira, parecida com o jogo encantado das contas de vidro que Hermann Hesse descreveu, algo que se faz por puro prazer, sabendo que Deus está muito além de nossas tramas verbais.

Teologia não é rede que se teça para apanhar Deus em suas malhas, porque Deus não é peixe, mas Vento que não se pode segurar…

Teologia é rede que tecemos para nós mesmos, para nela deitar o nosso corpo.

Ela não vale pela verdade que possa dizer sobre Deus (seria necessário que fôssemos deuses para verificar tal verdade); ela vale pelo bem que faz à nossa carne.

Ah! Pensam que sou herege… Nada disto. Estou apenas repetindo coisa muito velha, esquecida, da tradição protestante, que diz que ‘conhecer a Cristo é conhecer os seus benefícios’: de Deus, o único que podemos saber é o bem que faz ao nosso corpo. Com o que concorda o sábio Riobaldo: ‘Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. E o aberto perigo das grandes e pequenas horas… Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim, dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença para coisa nenhuma.’

De Rubem Alves, retirado do ensaio “Sobre deuses e caquis” (O quarto do mistério, p 137)

A Reforma Protestante

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 215.

Eu sou de tradição protestante, muito embora, para permanecer protestante, tenha me desligado das igrejas protestantes. É preciso esclarecer que a tradição protestante nada tem a ver, absolutamente nada, com esses movimentos religiosos que se denominam “evangélicos”. A tradição protestante não promete milagres, cultiva a razão, estimula a ciência, é profundamente ética, e a ela estão ligados nomes como Leibniz, Kant, Hegel, Kierkegaard, Albert Schweitzer, Martin Luther King Jr., Dag Hamarkjoeld, Dietrich BonhoefFer, Mondelaine. Em que consiste essa tradição? A Reforma, contrariamente ao nome, não foi um movimento que visava “reformar” a Igreja Católica do século XVI: não se coloca remendo de pano novo em tecido podre. Não é um conjunto de doutrinas teológicas diferentes como justificação pela graça e sacerdócio universal das pessoas. Não é uma nova organização da Igreja. Quem só sabe essas coisas não viu o que é essencial. Para dizer o que foi o espírito da Reforma, vou me valer de uma peça musical, a Segunda sinfonia de Gustav Mahler (1860-1911), chamada Sinfonia da ressurreição. Eis como ele mesmo descreve o último movimento da sinfonia: “Chegou o dia do julgamento final. O terror cobre a terra. A terra estremece, as sepulturas se abrem, os mortos ressuscitam, poderosos e humildes, reis e mendigos, justos e injustos. Um grito terrível enche o universo com um pedido de perdão que enche o espaço. Ouvem-se as trombetas apocalípticas. É hora do ajuste de contas, débitos e créditos, Céu e Inferno, Inferno tão bem pintado nas telas horrendas de Hieronimus Bosch. Então, em meio a um silêncio sinistro, ouve-se o canto de um rouxinol distante. Uma grande tranquilidade invade tudo. E eis, surpresa! Não há julgamento, não há débitos e créditos, não há justos e pecadores, não há poderosos e humildes, não há vinganças e recompensas, não há condenações! Um sentimento de amor perfuma o mundo”. A Reforma foi o canto de um rouxinol nesse horror de culpa e medo. Não há julgamento. Deus é todo bondade.

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 215.

Consultório bíblico

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 214.

Laura Schlessinger é uma conhecida locutora de rádio nos Estados Unidos. Ela tem um desses programas interativos que dá respostas e conselhos aos ouvintes que a chamam ao telefone. Recentemente, perguntada sobre a homossexualidade, a locutora disse que se trata de uma abominacão, pois assim a Bíblia o afirma no livro de Levítico 18:22. Um ouvinte escreveu-lhe então uma carta que vou transcrever: “Querida Dra. Laura: Muito obrigado por se esforçar tanto para educar as pessoas segundo a Lei de Deus. Eu mesmo tenho aprendido muito do seu programa de rádio e desejo compartilhar meus conhecimentos com o maior número de pessoas possível. Por exemplo, quando alguém se põe a defender o estilo homossexual de vida, eu me limito a lembrar-lhe que o livro de Levítico, no capítulo 18, versículo 22, estabelece claramente que a homossexualidade é uma abominaçâo. E ponto final… Mas, de qualquer forma, necessito de alguns conselhos adicionais de sua parte a respeito de outras leis bíblicas concretamente e sobre a forma de cumpri-las:

Gostaria de vender minha filha como serva, tal como o indica o livro de Êxodo, 21:7. Nos tempos em que vivemos, na sua opinião, qual seria o preço adequado?
O livro de Levítico 25:44 estabelece que posso possuir escravos, tanto homens quanto mulheres, desde que sejam adquiridos de países vizinhos. Um amigo meu afirma que isso só se aplica aos mexicanos, mas não aos canadenses. Será que a senhora poderia esclarecer esse ponto? Por que não posso possuir canadenses?
Sei que não estou autorizado a ter qualquer contato com mulher alguma no seu período de impureza menstrual (Lev. 18:19, 20:18, etc.). O problema que se me coloca é o seguinte: como posso saber se as mulheres estão menstruadas ou não? Tenho tentado perguntar-lhes, mas muitas mulheres são tímidas e outras se sentem ofendidas.
Tenho um vizinho que insiste em trabalhar no sábado. O livro de Êxodo 35:2 claramente estabelece que quem trabalha nos sábados deve receber a pena de morte. Isso quer dizer que eu, pessoalmente, sou obrigado a matá-lo? Será que a senhora poderia, de alguma maneira, aliviar-me dessa obrigação aborrecida?
No livro de Levítico 21:18-21 está estabelecido que uma pessoa não pode se aproximar do altar de Deus se tiver algum defeito na vista. Preciso confessar que eu preciso de óculos para ver. Minha acuidade visuai tem de ser l00% para que eu me aproxime do altar de Deus? Será que se pode abrandar um pouco essa exigência?
A maioria dos meus amigos homens tem o cabelo bem cortado, muito embora isto esteja claramente proibido em Levítico 19:27. Como é que eles devem morrer?
Eu sei, graças a Levítico 11:6-8, que quem tocar a pele de um porco morto fica impuro. Acontece que adoro jogar futebol americano, cujas bolas são feitas de pele de porco. Será que me será permitido continuar a jogar futebol americano se usar luvas?
Meu tio tem uma granja. Deixa de cumprir o que diz Levítico 19:19, pois planta dois tipos diferentes de sementes no mesmo campo, e também deixa de cumprir a sua mulher, que usa roupas de dois tecidos diferentes, a saber, algodão e poliéster. Além disso, ele passa o dia proferindo blasfêmias e maldizendo. Será que é necessário levar a cabo o complicado procedimento de reunir todas as pessoas da vila para apedrejá-los? Não poderíamos adotar um procedimento mais simples, qual seja, o de queimá-los numa reunião privada, como se faz com um homem que dorme com a sua sogra, ou uma mulher que dorme com o seu sogro (Levítico 20:14).
Sei que a senhora estudou esses assuntos com grande profundidade de forma que confio plenamente na sua ajuda. Obrigado de novo por recordar-nos que a Palavra de Deus é eterna e imutável.

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 214.

Deus nos deu asas

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 219.

Deus nos deu asas
As religiões inventaram as gaiolas. Nossas asas são a imaginação. Pela imaginação voamos longe, muito longe, pela terra do nunca mais, pela terra do impossível, pela terra do impensado. Não entenderam? Leiam Cem
anos de solidão. Vocês entenderão. Eu até que entendo a razão por que se fazem gaiolas e cercas. Vejam o caso das galinhas. Se não vivessem em cercados, como colher os seus ovos? Se os pássaros não estivessem nas gaiolas, como possuir o seu canto? Cercas e gaiolas são construídas para se possuir aquilo que, de outra forma voaria livre, para longe… Faz tempo, escrevi uma estória para a minha filha, A menina e o pássaro encantado. É sobre uma menina que tinha como seu melhor amigo um pássaro. Mas o pássaro voava livre. Vinha quando tinha saudades da menina. E depois ia embora e deixava a menina a chorar. Aí a menina comprou uma gaiola…
Essa estória eu a escrevi porque iria ficar muito tempo longe, nos Estados Unidos, e ela, minha filha de quatro anos, não queria que eu fosse. Fui e voltei. Depois de publicada, fui informado de que ela estava sendo usada por terapeutas como material para tratamento de homens que queriam engaiolar as mulheres e mulheres que queriam engaiolar os homens. Aí um amigo me disse. “Que linda estória você escreveu sobre Deus…” Fiquei sem entender. Ele perguntou então: “Mas o Pássaro Encantado não é Deus, que as religiões tentam prender numa gaiola?. Cada religião anuncia que o Pássaro Sagrado está na sua gaiola, só na sua gaiola. Os outros pássaros, nas gaiolas das outras religiões, não são o verdadeiro Pássaro Encantado…”

Canto ou ovos?
Há pessoas que amam o Pássaro Encantado por causa do seu canto. Outros, por causa dos seus ovos. Com ovos se fazem deliciosas omeletes. Jesus disse a mesma coisa de outra forma. Há os que amam a Deus por causa dos seus poemas. Deus é poeta. No princípio era o Verbo. Outros amam a Deus por causa dos pães. Deus é um bom padeiro.

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 219.

Religião, um Círculo tedioso de Debate

Texto de Walter A. Bach, encontrado em http://ubdeistas.blogspot.com.br/2013/05/religiao-circulo-tedioso-de-debate.html

Roda de conversa, você e mais alguns amigos ou familiares. O café está ótimo, todos estão rindo, seja de algum incidente do cotidiano ou de alguma piada ouvida no corredor do trabalho. A conversa vai por vários tópicos, até que alguém, nada discretamente, começa a falar de religião. Porque isso e aquilo, sabemos disso, está provado em tal lugar, foi escrito anos atrás, o ser humano mais aquilo e nada… para quem já se sentiu farto desse tipo de situação, essa é a hora em que o café desce pela garganta com um gosto mais amargo que o normal.

“É importante incentivar a pessoa a participar da vida na igreja”, “ele está sempre estudando o tema”, “ele que era tão devoto de tal crença e agora está nessa outra igreja”, com o devido respeito, irei parar de reproduzir pérolas (manchadas) aqui. Todos já ouvimos pelo menos uma, e, redundantemente, iremos ouvir mais.

E nada que seja absolutamente novo. Não apenas pela repetição de pseudo máximas que dependendo de quem as fala e do tom de voz soam terrivelmente maniqueístas, mas porque nessas horas, salvo raríssimas exceções, conversar sobre religião se torna algo tedioso.

Ainda que o passado brasileiro tenha sido quase monopolizado pelo catolicismo, a suposta pluralidade religiosa significa que temos diferentes formas de nos aborrecer com o tema. O singelo fato de um sem número de batizados desta religião a terem abandonado (não entremos em tais detalhes) já é uma amostra de quantos órfãos ela consegue deixar. A despeito disso, a ‘religião oficial’ do país ainda possui numerosos fiéis, capazes de buscar o santo adequado a sua situação como quem procura peças em uma loja de mecânica.

Tedioso também porque a crescente massa de evangélicos está criando estereótipos cada vez piores. Frequentadores de instituições com regras arbitrárias (já ouvimos aquelas de ‘não pode assistir televisão’ ou instruções de vestimenta) ; pessoas que buscam igrejas adeptas da dita teoria da prosperidade, predominantemente material; ramificações infindáveis em meio a um povo que apesar de ter o mesmo ‘título’ – evangélico – parece não haver acordo em quem tem mais razão que o outro em seguir a bíblia; espetacularização do aspecto religioso, com transmissões televisivas dignas de uma produção cinematográfica comercial; poderíamos citar muitas outras razões pelas quais os evangélicos muitas vezes , sem perceber, vulgarizam a si mesmos com tamanha expressividade.

Chato de discutir porque independente do indivíduo seguir uma doutrina católica, evangélica ou qualquer outra, o efeito mais conhecido é de que ele fique com uma viseira acima dos olhos, impedindo-o de aceitar outras religiões. Não precisamos nos esforçar para topar com quem manifeste preocupação em saber se uma terceira pessoa vai para o céu ou inferno por ser supostamente boa ou má, sendo que isso nem sequer é da nossa conta.

Há ocasiões em que acaba sendo cansativo até quando topamos com quem se diz ateu. Não pela descrença, nem pelos seus motivos. Mas os ataques de alguns contra as crenças vigentes enjoam. São quase sempre os mesmo argumentos- a religião engana, age como quem ignora o conhecimento, Deus não está preocupado com esse mundo e deixa a humanidade se quebrar sozinha, condiciona os indivíduos a pensarem sempre de um jeito, muito do que se ensina nas igrejas pode ser ou já foi feito melhor pela ciência, para citar alguns. Ninguém precisa se declarar ateu para perceber a aplicação de um ou mais desses itens – já deixou de ser surpresa encontrar uma pessoa batizada em uma religião e não praticá-la. Mas há ateus que preferem a pura verborragia anti-cristã do que se dedicarem ao estudo de algum assunto que lhes interesse, e quando se tem o desprazer de topar com alguém assim, é difícil medir o aborrecimento causado por eles ou por fanáticos.

Há ainda a malfadada situação: questionado se segue uma religião, você responde que nenhuma, e é taxado de ateu, como se qualquer um que não queira pertencer a uma organização religiosa tradicional o fosse. Quando o indivíduo prefere seguir uma filosofia, ou tem uma crença que não se encaixa nesse ‘padrões’, manifestando-a abertamente ou não, e é taxado de herege, ateu e rótulos semelhantes, é fácil ter a impressão de que a tolerância religiosa deste país é uma mentira.

O leitor ou leitora talvez me considere radical por tal afirmação. Talvez seja. Mas é no mínimo curiosa essa resistência de muitos adeptos de religiões tradicionais em aceitar particularidades fora de sua esfera, como se todo mundo tivesse obrigação não apenas de seguir alguma doutrina, mas principalmente de expressá-la e (pior) convencer outrem a acreditar nela.

É possível acumular conhecimento sobre diversas religiões, mas não é garantia de unir praticantes delas a entrarem em consenso. Mas mantém-se o círculo tedioso de debate sobre religião, cujas ‘conclusões’ ficam restritas a grupos de amigos, familiares e colegas, divididos por suas fés. O assunto é gasto rapidamente, os argumentos de sempre empilhados como tijolos na área de construção. Porém, não somente a pilha é disforme, como dificilmente se percebe que o solo onde ela está é menos sólido do que aparenta.

Texto de Walter A. Bach, encontrado em http://ubdeistas.blogspot.com.br/2013/05/religiao-circulo-tedioso-de-debate.html

Evangelho de judas

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 193.

Chegou-me a última edição da revista Geographic Magazine, toda ela dedicada ao Evangelho de Judas, que está produzindo uma grande confusão nos círculos religiosos. E isso porque esses manuscritos trazem uma versão diferente do que aconteceu: Judas não foi traidor. Não entendo essa confusão, porque qualquer pessoa minimamente informada em teologia sabe que Judas não foi um traidor. Trair é romper um pacto. Mas Judas não rompeu pacto algum. Pelo contrário: fez cumprir o pacto que lhe havia sido destinado por Deus Pai desde toda eternidade. Porque Deus, na sua onisciência, estabeleceu um plano de salvação para os homens que, de outra forma, iriam para o Inferno. Deus poderia perdoar os seus pecados. Mas Deus não perdoa. Aquilo a que se dá o nome de perdão é, na realidade, o pagamento de uma dívida pendente. Deus não perdoa dívidas. As dívidas têm de ser quitadas. Quitadas com quê? Dizem as Escrituras que sem sangue não há remissão de pecados. Deus só aceita pagamento em sangue. Que sangue seria suficiente para pagar os pecados do mundo? Somente um sangue de valor infinito. Mas, sangue de valor infinito, só o sangue divino. Para isso veio Jesus – segundo a teologia -, para derramar o seu sangue de valor infinito que Deus aceitaria como pagamento. Deus planeja a morte do seu próprio filho para nos salvar do Inferno. Por que Deus criou o Inferno, isso eu não sei. Sei que não foi o Diabo, porque Deus, sendo onipotente, não permitiria que o Diabo tivesse tais poderes. Então, todo o plano elaborado por Deus Pai desde toda a eternidade dependia de que Jesus fosse crucificado. Imaginem que ele não fosse crucificado. Que ele se mudasse para a Grécia e terminasse os seus dias com 88 anos de idade, como professor de filosofia. A filosofia ganharia, mas a humanidade iria para o Inferno. Foi assim que Deus, desde toda eternidade, determinou que um homem chamado Judas entregasse Jesus para o sacrifício. Judas não tinha alternativa. Ele tinha de ser fiel aquilo que Deus determinara. Então não foi Judas que entregou Jesus. Parece assim, vendo-se do lado do tempo. Mas, vendo-se sub specie artemitatis, é Deus que está fazendo tudo. Judas foi um fiel instrumento de Deus para que a salvação se realizasse. Assim, nenhum outro apóstolo contribuiu tanto para a salvação da humanidade quanto Judas. Isso já era do conhecimento da Igreja, desde sempre. Não entendo, portanto o rebuliço. Proponho a canonizaçâo de Judas.

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 193.

Vida após a morte

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 197.

Achei apropriado informar os meus leitores sobre aquilo que sinto e penso acerca da vida após a morte. Meu coração está tranquilo e não há dúvidas que o perturbem porque são duas, apenas duas, as possibilidades à minha frente. Primeira possibilidade: há vida após a morte. Nesse caso, estou tranquilo porque, se há vida após a morte, é porque há um Poder Misterioso que a garante, poder esse a que alguns dão o nome de Deus, sem saber o que ele seja. No caso de haver esse Poder Misterioso, é minha tola convicção (todas as convicções são tolas) de que ele é só amor. Não estou sozinho nessa crença, tenho a meu favor o testemunho de profetas, místicos e poetas. Sendo só amor, é claro que a vida após a morte será uma realização do amor. A ideia de que o Poder Misterioso é um torturador que mantém, para prazer próprio, uma câmara de torturas sem fim chamada Inferno, é uma calúnia espalhada pêlos seus inimigos, na esperança de que os homens deixem de amá-lo e passem a odiá-lo. Mas, quando é que o amor se realiza? O amor se realiza quando recebemos de volta as coisas que amamos e perdemos. É por isso que sentimos saudade. A saudade é a nossa alma dizendo para onde ela quer voltar. Assim, em havendo uma vida após a morte, estou certo de que voltarei a subir em jabuticabeiras, a brincar em riachinhos, a balançar no balanço amarrado no galho da mangueira, a comer ora-pro-nóbis refogado com carne de porco, angu, feijão e pimenta, a fazer virar a locomotiva maria-fumaça no virador, a empinar
papagaios em tardes de céu azul, a catar flores de paineira para com elas fazer soldadinhos… Que mais posso desejar? Como disse a Maria Alice, deve haver tantos céus quantas pessoas há. Meu céu não é igual ao seu. Nem poderia ser. Nossas saudades são diferentes. Em torno de cada pessoa gira um universo que é só dela. Dizem os astrônomos que há muitos bilhões de anos (para mim não faz a menor diferença se são bilhões ou milhões, porque esses números são impensáveis) houve um estouro gigantesco, o Big Bang, a partir do qual foram projetados no espaço sem fim os astros celestes que hoje formam o universo que conhecemos. Nada impede que haja infinitos outros, além dos nossos telescópios. Pois eu acho que não foi só isso: todos nós fomos também projetados no espaço sem fim, cada um de nós é uma estrela em volta da qual se forma uma nebulosa espiralada… Essa é a primeira e deliciosa possibilidade.
Segunda possibilidade: não há vida após a morte. Nesse caso, a morte significa que vou voltar ao lugar onde estive por todo o tempo infinito passado, inclusive no Big Bang. Esse período de bilhões de anos não me foi doloroso, não me fez sofrer, nem demorou a passar. E poderei, então, imaginar que o evento maravilhoso do meu nascimento a partir desse caos indefinido poderá se repetir daqui a um bilhão de anos, mas não sofrerei nem ficarei impaciente, porque estarei mergulhado no sono profundo da não existência. Assim, por que ter medo? Medo eu não tenho. Tenho é tristeza porque este mundo é muito bom e quereria continuar a fazer minhas coisas por aqui. Pelo menos por agora é isso que sinto. Pode ser que eu venha a mudar de ideia. Fernando Pessoa escreveu um poema que vai assim: “Tenho dó das estrelas, luzindo há tanto tempo, há tanto tempo… Tenho dó delas. Não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas, um cansaço de existir, de ser, só de ser, o ser triste brilhar, ou sorrir… Não haverá, enfim, para as coisas que são, não a morte, mas sim uma outra espécie de fim, ou uma grande razão – qualquer coisas assim como um perdão?”.
Pode ser que eu venha a sentir esse cansaço e venha a desejar um fim.
Mas ainda não me sinto cansado, agora.

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 197.

O papa reza pela paz

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 192.

Todo mundo quer a paz. Mas, como muito bem observou santo Agostinho, cada um deseja a paz que lhe seja conveniente. A paz das galinhas é um mundo sem gambás. A paz dos gambás é um galinheiro cheio de galinhas. O presidente Bush quer a paz e, para que a sua paz seja alcancada, é preciso que o Irã seja destruído. O Irã deseja a paz e, para que a sua paz seja alcançada, é preciso que os Estados Unidos sejam destruídos.
O papa reza pela paz. Não sei por que é necessário orar pela paz. Jesus disse que, antes que rezemos, Deus já sabe tudo. Qual será o objetivo de rezar pela paz? Chamar Deus à razão? Ele não está prestando atenção? Convence-lo a fazer o milagre da paz? Será que Deus não quer a paz? Ao que tudo indica, ele não quer. Porque, se quisesse, a paz aconteceria… Ele atenderia às rezas do seu representante.

Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 192.