Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 219.
Deus nos deu asas
As religiões inventaram as gaiolas. Nossas asas são a imaginação. Pela imaginação voamos longe, muito longe, pela terra do nunca mais, pela terra do impossível, pela terra do impensado. Não entenderam? Leiam Cem
anos de solidão. Vocês entenderão. Eu até que entendo a razão por que se fazem gaiolas e cercas. Vejam o caso das galinhas. Se não vivessem em cercados, como colher os seus ovos? Se os pássaros não estivessem nas gaiolas, como possuir o seu canto? Cercas e gaiolas são construídas para se possuir aquilo que, de outra forma voaria livre, para longe… Faz tempo, escrevi uma estória para a minha filha, A menina e o pássaro encantado. É sobre uma menina que tinha como seu melhor amigo um pássaro. Mas o pássaro voava livre. Vinha quando tinha saudades da menina. E depois ia embora e deixava a menina a chorar. Aí a menina comprou uma gaiola…
Essa estória eu a escrevi porque iria ficar muito tempo longe, nos Estados Unidos, e ela, minha filha de quatro anos, não queria que eu fosse. Fui e voltei. Depois de publicada, fui informado de que ela estava sendo usada por terapeutas como material para tratamento de homens que queriam engaiolar as mulheres e mulheres que queriam engaiolar os homens. Aí um amigo me disse. “Que linda estória você escreveu sobre Deus…” Fiquei sem entender. Ele perguntou então: “Mas o Pássaro Encantado não é Deus, que as religiões tentam prender numa gaiola?. Cada religião anuncia que o Pássaro Sagrado está na sua gaiola, só na sua gaiola. Os outros pássaros, nas gaiolas das outras religiões, não são o verdadeiro Pássaro Encantado…”
Canto ou ovos?
Há pessoas que amam o Pássaro Encantado por causa do seu canto. Outros, por causa dos seus ovos. Com ovos se fazem deliciosas omeletes. Jesus disse a mesma coisa de outra forma. Há os que amam a Deus por causa dos seus poemas. Deus é poeta. No princípio era o Verbo. Outros amam a Deus por causa dos pães. Deus é um bom padeiro.
Texto extraído do livro: Ostra feliz não faz pérola / Rubem Alves – São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008 – Página 219.